A cidade começou a ser alagada, com aquelas chuvas que não paravam mais. Todos da parte de baixo da cidade fugiam para a parte de cima. Estavam entre os raios ou o afogamento. Eu também estava lá no meio desse êxodo, protegendo meus olhos das gotas de chuva; escorregando no lamaçal, levantando; sentindo as águas doces do céu se misturarem com as minhas águas salgadas.
Naquela situação de sobrevivência, era cada um por si, perdi meus parentes e amigos, não sei se foi por acaso… Fiquei para trás, sempre fui o mais lerdo deles, e, agora não seria diferente. Segui o fluxo, naquela multidão de desabrigados.
Logo estávamos quase perto da beira do rio. Quando, enfim lá chegamos senti minha barriga mais gelada do que toda a minha pele que já tremia. “Vamos, vamos, mais rápido escutei alguém gritar.” Eu procurava não olhar para o rio que só enchia e enchia, mas o barulho da correnteza estava mais alto do que os dos pés de toda a peregrinação. Num leve relance de olhos vi a água lamaceada levar árvores. Seguimos no contrafluxo.
“Agora formem fila, entenderam fila”, gritava aquele líder instantâneo e inesperado na nossa frente. Quando firmei os olhos percebi que tinha um caminhão truck impedindo a passagem. “Um de cada vez, rápido, rápido.” E lá iam seus seguidores conforme o seu mestre mandou.
Quando chegou a minha vez, travei, não tinha coragem de passar naquele caminho estreito, sabia que o rio a tudo engolia, fiquei com tontura, sentei na beira daquele barranco com a caminhão nas costas, segurei na barra de apoio já toda enferrujafa no leito do rio. Começaram a gritar e a me xingar, a fila continuava grande atrás de mim, eu não escutava nada e nem lembro o que se passava na minha mente naquela hora.
Subitamente senti meus pés descalços serem invadidos pela água suja do rio. Despertei do sono da morte. Levantei e fui para o alto da montanha, onde tivemos que a tudo colonizar e recomeçar.
Aqui construi uma nova casa, agora têm árvores frutíferas e carneiros no pasto. Famílias novas se formaram. Eu continuo lento, sentado na cadeira de balanço lendo, olhando além da janela os campos sem fim.
Muitas enchentes acontecem em gente.
Até os comerciantes chegam aqui, trazendo alimentos e quinquilharias, menos o Dindoco meu cachorro de estimação. Ele deve estar vivendo debaixo de outras árvores lá na parte debaixo da cidade, para onde não quis nunca mais pisar.
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Gostei muito do conto. A água assusta mas também é recomeço 🙂 Bom domingo !!!
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